Poconé para além do Pantanal

Em abril desse ano, fui convidada pelo fotógrafo José Medeiros a conhecer o Pantanal dos pantaneiros e de José Medeiros, que carinhosamente apelidei de Colecionador de Histórias.

Poconé é uma pequena e pacata cidade de acesso à Transpantaneira: uma estrada que nos leva ao coração do Pantanal, em Porto Jofre, nas margens do Rio São Lourenço, divisa com MS. Com 140 km de extensão, centenas de pontes e apenas uma curva: a curva dos cem (no km 100)…

Foto: @josemedeirosfotografo

A cidade também é conhecida pelas manifestações da cultura popular, que por sua riqueza de detalhes, ganharam destaques no folclore brasileiro: A dança dos Mascarados e a Cavalhada.

A Dança dos Mascarados é executada apenas por homens, que usam máscaras e trajes masculinos e femininos que cobrem todo o corpo. É um belo espetáculo cênico de origem afro-indígena. Já a Cavalhada, de origem portuguesa,  é a representação do conflito entre mouros e cristãos, onde 24 cavalos e cavaleiros ornamentados disputam a rainha.

O Colecionador de Histórias foi meu guia em um Pantanal que ele vivencia há mais de 15 anos. Minha primeira parada foi na casa de Júlia, filha de Donato – um pantaneiro que faleceu em 2020, personagem e amigo retratado por José Medeiros em sua trajetória.  

Donato era um homem distinto, e segundo José Medeiros, o legítimo pantaneiro. Nasceu e viveu no pantanal, levando gado nas grandes comitivas. Gostava de andar descalço, suas tralhas eram de couro – que ele mesmo fabricava, fazia chá de folha de mangueira para seu café da manhã e usava sempre calças, camisa de manga comprida e um chapéu de palha.

Em uma pequena caminhada, Júlia me explicou sobre o motivo das camisas compridas e de cor clara: estar sempre alinhado e evitar as picadas de mosquitos. E que bosta de vaca queimada pela manhã, ajuda a espantar esses pequenos insetos. Segundo meu guia, a frase: “céu e inferno em terras alagadas” foi usada a primeira vez para se referir aos mosquitos (até agora não sei se isso foi uma brincadeira ou não). Júlia também nos contou que casca de angico é bom para assar bolo na brasa.

Não há como não se encantar com os pantaneiros, com seus cavalos que pastam nas águas,  atravessam rios, suas tralhas, seus traços firmes. Eles se tornaram seres míticos do Pantanal. Quanto mais se caminha pelo pantanal, mais se procura por esses seres, que ainda existem – acreditem, eu conheci alguns deles.

Nossa segunda parada foi para conhecer a casa de Dona Apolônia, também já falecida. Foi uma pessoa importante na vida espiritual de José Medeiros, lhe deu uma oração de proteção, que ele não diz qual é, mas que está em seu altar. Foi na casa de Dona Apolônia que compreendi a força da religiosidade do povo Pantaneiro.

Foto: @josemedeirosfotografo

Logo na entrada da casa, numa área cheia de plantas, um colorido altar para São João me encheu os olhos de lágrimas. Dali em diante, fui tomada por um sentimento de beleza e introspecção que me levou a ficar 30 minutos em silêncio, pois não tinha nada a dizer – nem a mim mesma: apenas silêncio e um sentimento profundo de amor e reconhecimento da vida.

Dona Heide, rezadeira de 60 anos, nos contou que aprendeu a rezar ainda criança. Diariamente, ao entardecer, sua madrinha estendia um tapete de couro de boi no chão, se ajoelhava em frente ao altar e puxava a reza, e as crianças, todas sentadas em torno dela, iam respondendo, e assim foi aprendendo o ofício.

A fé e seus mistérios me acompanharam por toda travessia do Pantanal. Pude perceber o quanto a beleza e a religiosidade estão entrelaçadas com sagrado da natureza, no cotidiano do povo. Os pantaneiros vivenciam, através da natureza, a conexão entre o homem e o divino – seja onde estiver, São Benedito está presente. Aliás, essa canção virou um mantra para mim:

Ó São Benedito, vossa casa cheira, cheira cravo e rosa, flor de laranjeira. Que santo é aquele, que vem lá de fora, é São Benedito com nossa Senhora

Quando o fogo trouxe o inferno para as terras alagadas, essa conexão foi ameaçada, e, segundo os relatos que escutei, foi um momento doloroso, como numa batalha perdida. Muitos lutaram minuto a minuto, em uma grande operação de guerra, contra um inimigo sem face, onipresente e cheio de estratégias imprevisíveis – como saltar o grande Rio Lourenço, duas vezes.

Mas a fé e as profecias dos mais velhos são inabaláveis, assim como a consciência de que cada um escolhe seus passos segundo seu coração. Quando venceram o fogo, puderam apreciar, com sorriso largo, a volta das águas, os cantos dos pássaros e da brisa da tarde.

Pude ver, sentir e conhecer um Pantanal repleto de seres míticos: onças-pintadas que são bravas iguais às mães, jacarés dóceis, cavalos que vivem na água, mosquitos com armaduras prateadas que resistem a qualquer intempérie e pássaros devoradores de manga. Um Pantanal de boiadeiros, cavaleiros, guerreiros, contadores de histórias e principalmente, jardineiros.

Enfim, sou imensamente grata ao Colecionador de Histórias, por essa experiência única e as fotos que ilustram esse artigo 😍🙏.

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